História da Tigresa - Crítica de Rodrigo Monteiro


A Tragédia Grega do Stand Up Comedy (e de qualquer gênero teatral) 

Crítica sobre o espetáculo "História da Tigresa" por Rodrigo Monteiro


Escrito pelo Nobel de Literatura (1997), o italiano Dario Fo (1926), Storia della tigre e altre storie (The tale of Tiger / La historia del tigre) é, quem diria, a tragédia grega do Stand Up Comedy. E o primeiro trabalho da Companhia Teatral Destemperados. Escrito em 1978 e apresentado nos anos seguintes pelo próprio autor, consiste num monólogo em que o Contador conta uma história de quando, como ainda um soldado chinês, distanciou-se de sua tropa por diversos motivos alheios a sua vontade e viu-se totalmente abandonado à sorte. Depois de muito sofrer as intempéries do tempo e do espaço (tempestades, avalanches, montanhas...), encontra abrigo numa caverna em meio a uma enorme Tigresa e seu filhote. Prestes a morrer pelo excesso de leite materno, a Tigresa é salva pelo soldado que mama. Por sua vez, a Tigresa, com sua saliva milagrosa, salva também o soldado vítima de gangrena devido às anteriores adversidades. A narrativa evolui a um terceiro ato em que, na história e no ato de narrar, há espaço para a exploração da relação entre os animais e os seres humanos, os valores em período de guerra, o entendimento sobre si e sua relação com o outro. O jeito de contar essa história poderia ser, em se tratando apenas de teatro, realista (grandes cenários que abrigariam a narrativa e profundas discussões acerca dos acontecimentos), um musical (em que a Tigresa ganharia um solo e um corpo de baile), uma alegoria, uma farsa, uma comédia e assim por diante. A opção utilizada pelo autor e reconstituída pela produção dirigida por Arlete Cunha foi a de manter o ator-contador, Anderson Balheiro, livre de qualquer cenário ou adereço; com um figurino potente, mas discreto; com iluminação e maquiagem quase estritamente funcional e uma trilha sonora um pouco menos que isso. O ator está, assim, sem nenhum outro recurso que não si mesmo durante todo o tempo da narrativa. Tudo parte e se estabelece apenas da relação entre o corpo do ator e corpo de espectadores. Nada mais. (No Stand Up Comedy tradicional, há um microfone.) 

Um espetáculo produzido nos moldes de “A História da Tigresa” tem vários desafios e posso citar alguns: a história precisa ser contada do ponto de vista da ação a fim de prender a atenção do público na sucessão de ganchos que desenlaçam um dado e, ao mesmo, tempo amarra outro. O ator precisa ter excelente dicção de forma que as palavras não se percam, é preciso ritmo no contar de jeito que o tédio imanente resista a sua própria instauração, os movimentos gestuais e cinéticos precisam ser precisos e ágeis exibindo uma disposição do contador em mudar tudo a qualquer momento, outro meio de fazer a assistência não desviar o olhar. A sala em que a história é contada precisa ser confortável, permitindo ao espectador sentir prazer na mesma medida em que identifica prazer similar no ator que narra. Nem todos esses requisitos se cumprem adequadamente, mas o fato de boa parte ter atingido um bom nível faz com que “A História da Tigresa” entre no grupo dos espetáculos mais interessantes da temporada e, talvez, um dos melhores. 

O que falta? 

Balheiro não é nem tão ágil, nem tão carismático e nem tão criativo no primeiro ato, quando se situa o soltado e se explica como ele se afastou do seu grupo, como o é nos dois últimos. Felizmente, o movimento é crescente, o que causa uma boa impressão na hora de ir embora. A sucessão de atos não tem amarrações muito precisas e algumas situações se repetem mais do que o necessário. No segundo ato (quando o soldado convive com a tigresa e seu filhote), já não se tem presente boa parte do que aconteceu na abertura da história. Além disso, por concentrar-se na caverna a parte mais interessante da história, o terceiro ato (o soldado na cidade próxima à caverna) parece mais longo que os demais, mesmo que não seja. Por fim, faz calor na Sala Álvaro Moreyra e não há motivos para estarmos em formação italiana (sala dividida em dois lados: uma do ator e outra do público), o que faz a assistência encontrar barreiras na sua aproximação com o ator. 

Em cena, felizmente, fica um ator cheio de talento a exibir a técnica conquistada na sua carreira de longos anos, essa exposta de forma tranqüila e natural, simples e agradável. Também fica uma história inusitada e que faz pensar sobre as relações humanas. Sobretudo, temos aí uma produção despojada, extremamente cuidadosa nos detalhes menores: o figurino, a luz, a trilha e a maquiagem não erram um só passo além do adequado e, por isso, positivo. Para quem gosta de teatro, “A História da Tigresa” é um jeito interessante de ver como a arte nasceu e no que ela se resume, afinal, em todas as suas manifestações.

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